A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos ingressou com uma ação civil pública contra o município de Tijucas, na Grande Florianópolis, por causa de um monumento religioso, com dizeres bíblicos, construído há mais de uma década numa praça da cidade – o local é conhecido como praça da Bíblia. A entidade pedia, além da retirada do totem, indenização por danos morais coletivos, com argumento central de que o monumento viola a laicidade do Estado. A juíza de 1º grau Monike Silva Póvoas Nogueira, no entanto, julgou improcedentes os pleitos.
Inconformada, a associação recorreu ao TJ e, com base no artigo 19 da Constituição, explicou que “o Estado não é ateu, confessional ou plurirreligioso: é laico”. Segundo a associação, a laicidade não atende apenas aos anseios de um grupo de ateus e agnósticos, pois a separação entre Estado e Igreja é do interesse de todos, independentemente de crenças ou descrenças religiosas.
Na apelação, a associação sustenta que o Estado deve garantir a liberdade de crença e descrença dos indivíduos dentro da esfera privada. “Ou seja, deve apenas garantir a prática de seus cultos e liturgias para os indivíduos ou entidades religiosas, sem qualquer subvenção do poder público nesse sentido.” Os autores da ação disseram ainda que “a bíblia é um vetor de intolerância, pois ofende os ateus, os descrentes e os homossexuais, além de ser xenófoba”.
A associação diz que o argumento do valor cultural – ressaltado pela juíza – não é válido. “O argumento foi recentemente rejeitado quando do julgamento da ADI 4893, que trata de uma Lei do Estado do Ceará que regulamentava a vaquejada e que foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, por entender que o argumento da cultura não pode se sobrepor a outros direitos quando conflitantes no interesse coletivo,” anotaram os advogados.
De acordo com o relator da apelação, desembargador Sérgio Roberto Baasch Luz, este é um tema bastante delicado por envolver sentimentos pessoais ligados à crença religiosa, e que por isso deve ser tratado com muita cautela. Com a instituição da República em 1891, o Estado brasileiro desvencilhou-se do Estado confessional, no qual Estado e religião eram uma coisa só, e passou a adotar o modelo de separação atenuada.
Segundo Baasch Luz, a laicidade estatal é um princípio que opera em duas direções: de um lado, resguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado e, de outro, protege o Estado de influências indevidas oriundas da seara religiosa. Segundo o magistrado, a confusão ou mesmo uma forte conexão entre Estado e religião pode representar um meio de coerção – ainda que psicológica – sobre aqueles que não professam determinada crença, passando a mensagem de que seriam menos privilegiados ou até mesmo excluídos da comunidade.
Mas é inegável, prossegue o relator, que o nosso país foi colonizado e formado dentro de uma tradição cristã católica, o que leva a discussão para a questão da expressão cultural de nosso povo. “É incontestável que a presença de símbolos e referências religiosas do catolicismo está em toda parte: em nomes de cidades, estados e endereços (Estado de São Paulo, Estado de Santa Catarina, Av. São João…), em monumentos (Imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, Cristo Redentor), em feriados institucionalizados (Corpus Christi, Páscoa, Natal…) etc.”
Baasch Luz lembrou o voto do desembargador do TJ paulista Oscid de Lima, sobre tema similar: “O fato de alguém residir na Av. São João não o torna um cristão ou o obriga a mudar sua fé, porque o nome que ali é estampado é apenas uma expressão cultural que decorre da própria formação da nação.” Oscid continua: “A prevalecer a tese sustentada pelo autor, pergunta-se como seria feita esta depuração religiosa cultural: quantos milhares de ações civis públicas terão que ser propostas para afastar esta tradição cristã?”
Diante dessas e outras considerações, Baasch Luz entendeu que não se justifica a interferência do Poder Judiciário nesta seara, nos moldes pretendidos pela parte. “Hoje, passados 12 anos da lei que autorizou a criação do monumento, e 13 anos de sua construção, determinar a sua remoção representaria muito mais uma ofensa à comunidade cristã e aos habitantes da cidade – que, aliás, nunca se manifestaram publicamente avessos ao monumento.”
O relator sublinhou ainda que, embora tenha havido despesa pública para a construção do monumento, o valor não ficou demonstrado pela parte autora e “certamente foi de pequena monta, uma vez que se trata de um monumento deveras singelo. E determinar a sua remoção e a edificação de outra em seu lugar geraria ainda mais custos para o Município – o que não se justifica”. Para ele, deve-se prestigiar o equilíbrio entre os princípios constitucionais da liberdade religiosa e da laicidade do Estado brasileiro e, consequentemente, manter a praça no estado em que se encontra.
Por fim, o relator citou Fernando Capez: “A retirada de símbolos religiosos já instalados, além de promover uma alteração de um fato jurídico já consolidado, em um país composto por uma quase totalidade de adeptos da fé cristã, agride sem necessidade os sentimentos de milhões de brasileiros, somente para satisfazer a vontade e a intolerância de um restrito grupo de pessoas.” Logo, cabe ao Estado e à sociedade “não encorajar manifestações de intolerância daqueles que se sintam ofendidos pela livre expressão da fé alheia”. O voto do relator foi seguido de forma unânime pelos demais integrantes da 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.